Não é possível que seja assim

Você sempre foi surpreendente, não é mesmo? E naquele aniversário de relacionamento — que relacionamento, mesmo? — você quis se superar e me levar “para as alturas”, é… dedinhos fazendo sinal de aspas, eu aqui contando para as meninas essa peripécia de circo dos anos 30. Sou capaz de ouvir a musiquinha vindo do picadeiro com um apresentador com calças culotes.

Aliás, meu amigo (amigo, sério?), acho até que você passou meio dos limites daquela vez. Eu, a tolinha, até hoje tenho pesadelos terríveis sobre aquela noite. Nenhuma terapia funciona no objetivo de apagar aquelas imagens da minha mente. Fala sério, você fez de propósito para me traumatizar para o resto da vida. Era para deixar em mim a sua marca, indelével!

Depois de me mostrar uma gravação que você havia feito, de um anúncio que ouviu no rádio, eu já comecei a desconfiar. Rádio? Quem ouve rádio hoje em dia, que empresa anuncia em rádio, quem iria comprar algo anunciando em rádio? Lógico, você, o espetacular que faz coisas espetaculares.

Aí, me convenceu a partir para uma viagem de navio até a União Soviética, onde eu veria o maior espetáculo da Terra, em um circo russo, igualzinho aqueles da época dos czares, antigo. Mas que era belíssimo, que a viagem ia ser sensacional, que a travessia marítima seria incrível e que, enfim, você já tinha tudo pago, era só fazermos as malas.

Lá fui eu, sem nenhum entusiasmo e muita desconfiança. A maresia acabou com meu estômago, o cheiro de peixe do navio era nojento e eu, que amo o sol, estava tremendo dos pés à cabeça.

O hotel era um muquifo e você, sorridente, só conseguia ver beleza em tudo em que eu enxergava enfado e nenhum glamour, ao contrário. Era tudo sujo, desbotado, decrépito e decadente. Lá ia eu para refeições exóticas que só me faziam comer cada vez menos naquele lugar, total desânimo.

Enfim, chegou a grande noite da apresentação do circo mais incrível do planeta. A sua recomendação era de que eu me maquiasse com capricho e usasse aquele longo prateado, que me deixava ainda mais linda, com aquelas sandálias que acabavam com meus pés. Assim o fiz.

Fomos, você quase saltitante, eu quase zumbi. Na entrada, você entregou os ingressos que lhe custaram uma fábula para uma porteira que parecia ser mesmo, realmente, a mulher barbada. A gente se sentou em uma arquibancada estofada de vermelho e, enfim, as luzes anunciaram o show.

Tudo era um espetáculo bizarro. Engolidor de espadas, homem que atira facas de olhos vendados na gostosa que gira numa plataforma redonda, o mágico que serra a garota ao meio. Assim, tudo, tudo, eram números em que as mulheres se ferravam.

Finalmente, entra a acrobata mais audaciosa da galáxia. Quem? Eu!!!!! E eu, estarrecida, olhava para ela e para você, sem saber que brincadeira era aquela. Ela pendurada numa corda vai subindo, vai subindo cada vez mais alto. Ela/eu em roupas mínimas, pink brilhante. Charmosamente, ela/eu começa a rodar, rodopiar, dependurar, a ficar suspensa apenas pelo pé, e outras loucuras mais, de tirar o fôlego.

Eu? Chorava, agonizava a cada salto, pulo, e dá-lhe acrobacias que eu nunca fui capaz de imaginar ser capaz de fazer. Eu sorria, agitava os braços, jogava beijinhos para a plateia, mexia sedutoramente os cabelos que também serviam de gancho para me dependurar. Até que… caí! Voei, voei e me esparramei no centro do picadeiro, que aos poucos foi ficando vermelho com meu sangue.

Eu me olhava estupefata, boca aberta e já não ouvia ou via mais nada, só me via morta, meio achatada pela queda, toda quebrada, desengonçada ali, sangrando… Então veio o sorridente apresentador, e disse que tudo estava bem, que em poucos minutos o palco estaria limpo e o show continuaria. Assim, abriram-se as portas aos fundos, de onde saiu um lobo imenso, de pelos eriçados, rosnando e mostrando os dentes babentos e me comeu, arrancando pedaços de carne. Em minutos, o palco estava limpíssimo e a plateia batia palmas.

Olhei pasma para o lado. E você havia desaparecido! Com um esforço quase heroico, de quem acabou de se quebrar toda e ser devorada por um animal assim jamais visto, me levantei da arquibancada feita para o show grotesco. Equilibrando sobre o salto, caminhei como em câmera lenta ao hotel, fiz as malas. Fui pagar a estadia, mas a conta já estava paga por você, soube pelo recepcionista, que não conseguiu me dizer mais nada.

Fiz meu regresso completamente atônita. Eu já não parecia comigo mesma, nem com a mulher voadora de pink, eu já não parecia com ninguém que eu conhecia, eu… assim… não tinha a menor referência da minha existência. Cheguei naquilo que eu apenas acreditava ser a minha casa.

Nunca procurei por você, nunca mais o vi! Dentro do meu peito cresce um ódio enlouquecedor. Dei agora de gostar de tudo que se refere aos lobos.